quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Um arrecife no meu coração

Um arrecife no meu coração

“Arrecife ou recife (nomenclatura atual) é uma formação rochosa submersa logo abaixo da superfície de águas oceânicas, normalmente próxima à costa e em áreas de pouca profundidade.”
Comecemos assim, com a definição. O meu coração tem seus acidentes geográficos que alteram as “ondas da emoção” e assim se consolidou meus arrecifes, quando ainda menino, no Recife, Pernambuco, Brasil.
Sou filho de pernambucanos, meu Pai saiu da cidade “pequena porém descente” meio fugido e com muita garra para enfrentar São Paulo, e minha mãe com muita coragem para enfrentar os dois : Meu Pai e São Paulo. Ela se adaptou ao frio e aos desencantos de Sorocaba, fez amizades, cozinhou muito (ela gostava), mas sempre com o coração saudoso. Meu Pai foi um herói, comandou uma metalúrgica, aprendeu a pilotar avião, foi campeão de tiro, andou de cavalo, fez amigos também e talvez alguns irmãos que eu não conheça...
Nasci no Rio de Janeiro e aprendi a ter um jeito nordestino pela convivência de minha mãe e pelas aventuras em Recife. Sim, aventuras emocionantes. Minha Mãe, consumida pela saudade de uma família numerosa, marcava a data e, pilotando seu carro, ia sozinha com os filhos dirigindo para Recife. Amigos, isso seria loucura hoje, imagine na década de 60? Claro, tínhamos o movimento Hippie, os Rolling Stones, as drogas, sexo livre e Dona Maria do Carmo! A vanguarda da juventude nacional. Eu tinha muito medo, frouxura mesmo! Era o mais velho dos filhos homens, meu irmão muito novo, minha irmã meio abestalhada e animada com qualquer novidade e meu Pai ausente. A viagem era programada em três dormidas, mas a minha progenitora era da virada! Eita mulher doida e energética, avançada no tempo, acreditava que as estradas estariam melhores, que seu carro era poderoso e sem GPS se mandava por dentro desse nordeste feito um caminhoneiro experiente, encurtando os prazos, fazia em duas dormidas o percurso. O problema era o estado da Bahia: Até Minas Gerais ela se conformava com a distância e seguia o planejamento, mas ao sentir a presença dos coqueiros na estrada e a voz mais arrastadinha dos baianos criava coragem e lançava o grito de guerra “Dormir agora só no Recife” FUDEU GERAL! Eu começava a suar frio, sabia dos riscos, já tinha visto esse filme e às 5 da manhã saíamos de Governador Valadares para Recife, parando para abastecer e comer alguma coisa. São 1717 km em tempo estimado de 20 horas e 20 minutos, consulte o papai Google! Naquela época levávamos umas 25 horas, que loucura meu Deus! O santo de minha Mãe era forte, nossa senhora da Conceição, padroeira da cidade querida, Recife.

Meu coração não se cansa
De ter esperança
De um dia ser tudo o que quer
Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher
Que passou por meus sonhos sem dizer adeus
Sem dizer adeus
E fez dos olhos meus
Um chorar mais sem fim
Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo
Em mim
Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo
Em mim.

Caetano, meu bom baiano, é isso aí! Belezura de canção e me remete às mais saborosas lembranças. O meu coração vagabundo queria guardar o Recife em mim, seu mar, suas pedras e meus amigos. Na época o mundo se dividia, na minha cabeça em, Londres (o rock por lá fermentava), EUA com suas eternas guerras, e o Brasil partido no meio: Nordeste e Sudeste. As culturas eram por demais diferentes, não havia a rede globo roubando a beleza dos sotaques regionais, as estradas eram difíceis, a comunicação no telefone do Chacrinha (enfia o dedo enfia do dedo e roda, não é nada disso que vocês estão pensando é do telefone que eu estou falando! O velho guerreiro era demais!), tinha que dar linha, viu? Dar linha no velho aparelho preto betume era um ato de amor, minha namorada Pernambucana sabe disso, domingo de tarde e a prova de amor posta, ligar para o amado! Eram umas 2 horas se desse sorte falava...
Voltemos ao meu coração e suas ondas de emoções, vinham fortes na viagem, no medo absoluto, e se acalmavam em bater nos arrecifes (a minha família), para chegarem espumosas na praia linda e quente de Boa Viagem. Sim Boa Viagem para os outros ! Cacete, era duro, chegava morto em Benfica, casa de minha Vó, já de dia claro, com fome e agradecendo aos milagres ocorridos. Vinha Zé Oião abrir o portão, o DKW dava sua última e espalhafatosa acelerada, queimando gasolina e óleo e eu saía do carro desconfiado... Eu era um bicho estranho, que o diga minhas primas olhando aquele branquelo com cabelos longos (não tinha cabeludo em Recife!). Claro que Eu sentia a diferença circunstancial, tinha medo (ô cabra frouxo sô...). E ia me adaptando, tanto que cheguei até o galinheiro, o galo não gostou e voltei correndo com um belo rasgo na perna do maldito galo campeão de taekwondo, marca que até hoje trago. Normalmente íamos ao carnaval, tinha corso, que loucura! Voltava sujo e doidão das batidinhas infernais vendidas em tubos plásticos e o lança-perfume, doideira! Os bailes eram de primeira, Whiskys, mesa familiar, umas meninas para dançar, bebedeira, rodoro e a porrada comia! Claro, todo pernambucano é macho e festa sem uma briga não era completa. Lembro-me de tirar uma galega prá dançar no clube internacional (a família Novaes era prata da casa) e um rapaz, apaixonado, chegou e olhou para mim com olhos quentes de frevo e bebida, com uma garrafa vazia deu uma porrada na quina da mesa e declarou seu ódio aos cabeludos, roqueiros, hippies, paz e amor é o CARALHO! Sou nordestino macho e a mulher é minha! Amigos, o galo cantou no galinheiro errado, era primo prá todo lado (até hoje não conheci a metade), e o pau comeu legal! Cadeirada, soco na cara, em uma onda os foliões secos por continuar dançando davam o sinal para o segurança que de pronto passava para a orquestra soltar o famoso frevo das vassourinhas! Tudo resolvido, a porrada era carinhosamente desviada para o jardim e o baile seguia ma santa paz até acabar, já de manhã, na praça com orquestra e tudo “E no melhor da festa chega quarta-feira... É de fazer chorar...”.
Isso me marcou, numa época que só tínhamos em comum o desejo de chicletes americanos e fumar o famoso Marlboro importado (meu Pai fumava Minister e Eu Hollywood), todo o resto era descoberta, em terras afastadas e perigosas! Sobrevivi e tenho hoje não primos e sim amigos de farras, graças a ela, minha Mãe, a maior diplomata do mundo!

Roberto Solano

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