quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Pros que qué e pros que não qué

Pros que qué e pros que não qué

Noivado, apresentação das famílias, classe média alta, Recife, Pernambuco. A noiva estava ansiosa, a mãe tinha programado tudo com devido cuidado, um almoço de qualidade e fartura como manda a tradição local. A sala é ampla e a grande mesa está posta, louça fina, cálices de vinho de cristal (foi da Mãe da matriarca, avó da noiva), toalha bordada à mão, guardanapos de puro linho.
Chegam os convidados e sentam na bela varanda, um uísque escocês Red Label, como é de bom tom no recife, só o Red é bom e não se discute isso! Aliás, eu desconfio que foi a escócia que invadiu aquelas terras no passado, nada de holandês, um calor danado e a classe dominante só toma scotty, é o maior consumidor do mundo!
O almoço é servido após as famílias se observarem, é certo que no dia seguinte o comentário será e decote da futura sogra, mulher bem fornida, de amplas cadeiras e uma comissão de frente que já deve ter afogado os bigodes gordos do sogro. O irmão da noiva sei não, se o cardápio fosse um frango de cabidela ele não comia, a classe é unida! Em recife frango não come frango! Sorte que não era, tinha um belo cozido, muito bem feito por Maria do rosário, empregada antiga e prendada, tinha de tudo, quiabo, jiló, banana da terra, couve, carne de charque, músculo, paio dos bãos, e o detalhe gastronômico do pirão, esse era de comer rezando!
Sobremesas diversas, doces de banana, de jaca, bolo de rolo, e um queijo manteiga vindo de surubim, bem assado coberto com o verdadeiro mel de engenho. Dava prá casar na hora! A moça não sabia cozinhar mais a cozinheira podia fazer comida lá no futuro apartamento no bairro de casa forte, promessa da Mãe! O noivo acreditou...
Vamos para a sala de estar, disse o dono da casa, já meio cambaleante, mais pelos whiskys do que pela conversa chata do pai do noivo, doutor formado em recife, mas com pós em Denver ou Huston, sei lá, um desses lugares que o patrão de Maria do socorro nunca ouviu falar e nem queria saber. Maria do socorro, ou “Mary Help” era uma figuraça, vinda do interior, do sertão, boa moça, preservada e virgem, com seus 15 anos era feinha de doer, mas um doce de menina, esperta aprendeu rápido a andar de elevador (morria de medo da porta fechar e ela ficar sozinha naquela caixa de aço e espelho de rainha). Ficou feliz em conhecer a cidade grande, carros, avenida boa viagem com seus coqueiros verdes e aquela brisa suave nunca sentida na pele seca da lavoura dura de milho. Viu o mar, gostava de limpar as vidraças do patrão e ver o infindável oceano, muito maior que todos os açudes de limoeiro! Trabalhava aquele dia como uma distinta ajudante e promissora garçonete. Tinha treinado com a bandeja de prata (baixela de prata, dizia a patroa) coisa fina, para ocasiões especiais. Saiu da cozinha bem empinada (não olhe para os convidados, aprendeu, isso não é “chic”, sem saber o que queria dizer chic ela seguiu em frente), doze xícaras finamente pintadas, de porcelana chinesa (disse a patroa), e foi adentrando a sala animada. Que povo prá falar, pensava ela, rico quando come fala muito, pobre cochila e ronca de barriga cheia... O sucesso da festa se via no sorriso solto do noivo e alegria discreta da noiva, os outros homens tinham bebido bem e ela não achou justo julgá-los, embora aquele bigode do Pai estava ainda com umas lembranças do pirão entranhadas. Foi servindo, avançava com firmeza, não tremia, estava orgulhosa do serviço, era uma garçonete de classe! Na frente da patroa ficou esperando uma expressão de elogio naquele rosto fino e maquiado de “madame”, quando sentiu que não a agradou, a dona da casa não sorriu e ela percebeu algo errado, o que será? O vestido azul estava amarrotado ou o chapéu que teria ficado torto? Ela se lembra de ter prendido com vários berilos, não podia ser. Seguiu e voltou para a cozinha reabastecer a fina louça do café, com certeza aquele tio gordo ia pedir outro e acender o maldito charuto, homem fedido, volto prá lavoura e saio do emprego mas não lavo a cueca daquele porco, pensava.
A patroa estava de pé plantada, na cozinha indagou “Maria, o que é isso minha filha, você serve as xícaras com metade cheia de café e a outra sem café! Tu endoidou mulher!” Já perdendo a classe, encarou a serviçal com os olhos mais orbitais e um pouco vermelho da maquiagem excessiva. Maria não entendeu a raiva da patroa, estava tudo certo, dentro da mais perfeita ordem e harmonia, e com a certeza da confissão de domingo encarou ela como a imagem de nossa senhora da conceição, com um pouco de doçura e um pouco de pena de si mesma (será que errei?) e disse: “É pros que qué e pros que não qué” Pronto, claro como a água da nascente da fazenda, estava certíssima! Imaginem a desfeita de você não aceitar uma xícara e uma colher de prata nas mãos? Os que “não qué” tem que representar, custa nada segurar objeto tão valioso na mão e fingir que toma o café? A patroa se viu vencida e voltou prá sala pensando “Essa Maria do socorro é danada de inteligente se aprender a cozinhar vai pra casa de meu filho, esses jovens não gostam muito de café mesmo” e o sol se recolheu na tardinha do Recife.

Roberto Solano

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