Eu sei valorizar a arte
Foi nos anos 80, eu já formado engenheiro trabalhava com meu Pai. Naquele tempo não havia celular e as ligações eram feitas, nas ruas, pelos orelhões. Víamos da Tijuca em direção à Ipanema para visitar uma obra e o caminho era túnel Rebouças desaguando na lagoa Rodrigo de Freitas. Meu Pai sentiu a falta de um documento e precisava falar com o escritório, paramos. Existe um posto de gasolina em concreto aparente, uma cúpula que se assenta em quatro pilares, arquitetura moderna e bonita, uma referência na Av. Epitácio Pessoa, então paramos diante de um distinto orelhão. Saltamos do carro e já era fim de tarde, uma brisa agradável afagava meu rosto, olhei os belos prédios de luxo e recordei o samba do Billy Blanco:
“ Olho daquela janela na Epitácio pessoa
Bairro chamado Lagoa
Rio de Janeiro, GB
Caso a cortina se afaste
Vê-se um divã importado
Contrasta com o outro lado
Onde a favela se vê...
“
Era isso que sentia, a classe rica, bem assentada na zona sul da cidade prá lá de maravilhosa. Voltemos ao orelhão e ao fato: Tinha um sujeito falando no telefone, demorava, meu Pai tinha pressa, homem de negócio, decisão. Aproximamos-nos mais para mostrar urgência e sensibilizar o ocupante do aparelho. Naqueles tempos era curioso observar as filas dos orelhões, as pessoas faziam caras feias e conversavam para mostrar a pressa e o desgosto que tinham da moça namoradeira que ficava melosa sacudindo beijos para o amado e com fichas na mão, mal sinal essas fichas. Sim era o alimento da máquina que se chamava telefone de ficha, gulosa, comia aquelas moedas a cada 3 minutos ou quando endoidava comia sem dar a porra do sinal! Aí o pau comia e tome pancada no aparelho até ele cuspir o objeto roubado. O homem ali falando e o tempo passava até que desligou e saiu daquela semi-caverna telefônica aos prantos, ainda me lembro, magro com uma camisa branca suada e uma pasta marrom, deu-se o espanto. Papai, sempre curioso e de bom coração perguntou objetivamente com o famoso “posso ajudar?” E ao lado ele sentou no banco de concreto com o desconhecido contando um drama, uma esposa morta por câncer e um enterro a fazer sem nada no bolso, só aquela última ficha telefônica para suplicar ajuda da irmã que por ali morava e não atendia... Meu Pai, homem de não perder tempo e resolver problemas questionou o valor do enterro, algo em torno de um salário mínimo, puxou a carteira preta e amassada e me pediu para fazer o cheque (ele só gostava de assinar, nunca preencher). Estupefato segui as ordens do Pai-patrão, sem perguntar nada, ele assinou e deu para o homem da pasta marrom, um abraço apertado e um agradecimento acompanhado de um sorriso tímido de um enlutado.
Voltamos para o carro, um Passat bege, e nos dirigimos ao destino planejado, nada dito, estávamos com pressa, e a reunião de trabalho ocorreu sem maiores novidades; novamente no carro a pergunta martelava a minha cabeça, porque meu Pai deu essa grana toda para um mero desconhecido? Criei coragem e perguntei, ele respondeu: “Meu filho o sujeito quando é pobre sofre muito e pode se desesperar”...” Eu disse curto e grosso “ Pai, você acreditou naquela estória? “ Ele matou no peito e devolveu com a classe de um Nilton Santos, “ Filho, se for verdade eu fiz o que meu coração mandava fazer, mas caso seja mentira eu sei valorizar a arte ! “ A minha boca abriu, indaguei “ que arte pai ? “ Ele de bate - pronto devolveu a bola do jogo da vida com uma expressão calma, “ filho aquele rapaz é um dos melhores artista que já vi ! Valeu a cena, eu sei valorizar a arte ! “
Nunca me esqueci disso, me marcou para o resto da vida, um fato isolado que me mostrou a generosidade e a sensibilidade de um homem lido que trabalhava muito e se divertia pouco, raramente ia à um teatro ou cinema, mas tinha um coração enorme e um desapego ás coisas materiais quando colocadas em frente da palavra e da emoção. Querido Pai, vou aqui tentando acreditar no ser humano e nos artistas, valorizando cada dia a arte, tentando ser um pouquinho de você, beijos saudosos do filho que te acompanhou e aprendeu a preencher como ninguém os cheques da minha conta bancária preferida, meu coração.
Roberto Solano
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
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