quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Hoje eu vi um cego


Hoje eu vi um cego

   Ele, obviamente não me viu. Pensei em sensações não correspondidas como a de um faxineiro em resort de luxo, cruzando com a senhora de malas prontas, linda e feliz ao lado de seu marido milionário; os latidos dos cães que ficam sós nos fins de semana abandonados pelos donos que viajaram; no fotógrafo de casamento, que na nulidade do momento, tenta registrar a felicidade maior; do coveiro com sua constante e calada placidez diante da morte.
   Era verão, muito calor, Rio de Janeiro, bairro de Benfica. Eu lá, completamente isolado do mundo externo, confortavelmente sentado no carro de ar condicionado perfeito, 39 graus diz o termômetro e o cego andava pela calçada simples de um subúrbio também. A locomoção gerava emoção: tateada pela vareta, em passo comedido avançava, pé a pé, na dança incerta do caminho. Pensei “Gentileza gera Gentileza”, que vi pouco antes na pilastra do viaduto. Quem seria gentil com ele? Quem? E lá seguia o homem pobre de camisa branca e pele negra, riscando o vazio com leves toques no chão, como um pianista do nada, tocando a sua música própria que ele magicamente transformava em imagem. Fiquei pensando na sorte minha, sem calor e vista boa, andando sentado, com direção formada no trajeto certo da máquina, fazendo meu caminho com absoluta convicção de sê-lo o correto. E ele? Saberia da ida e da volta? Decorado estavam os sons que o levariam ao seu destino? Pensei em coisas tortas, no maior cajueiro do mundo, em coqueiros doidos que se torcem nas praias do nordeste, na vida dura do cortador de cana, em crianças desnutridas. Sofri. Por 2 segundos senti-me o rei do mundo! Sorri. Sou feliz por demais... Tenho sorte! Sou reto e ereto vivo sem maiores dependências, tenho direção, objetivos e sonhos. Quem saberia dos sonhos do homem que varava o vento quente? Sabores talvez... Ou músicas celestes.
- Cuidado!
   Era um motorista da frente que avisava ao passante que o cego, descuidadamente, saia de seu rumo em direção aos carros parados sobre a calçada. Pensei novamente na desconsideração pública e explícita de nossos governantes que geram o caos urbano que vivemos. Revolta. Vi a mão da ajuda alheia reparar o erro e se evadir do local em passos firmes. O salvador instantâneo se foi com o coração feliz (imagino eu) de ter reparado o rumo do deficiente. Ou teria cumprido uma ordem? O “cuidado” foi firme, de pessoa preocupada, na direção certa, no momento exato. Quem saberá?
   E de lá avisto o sinal verde, o mundo volta a mover, a vida segue comigo; e sem mais ver o cego, que obviamente não me viu, acelerei. 

Um comentário:

  1. Tio, muito bom este texto!
    Gostei muito do texto da luta do Fritz contra o Janjão também e o do indiando cabra safado.
    Abr.

    RODRIGO

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