sábado, 27 de fevereiro de 2010

Um Rio em Janeiro

Um Rio em Janeiro

Certa vez ouvi, em um bar, a tese de que a cidade do Rio de Janeiro teria este nome em virtude das fortes chuvas de verão, e em particular no mês de Janeiro. A cidade se transforma em um grande RIO, em JANEIRO, daí o apropriado nome de RIO DE JANEIRO. Bebidas à parte, essa cultura de botequim tem certa razão, vemos essa terrível transformação de uma cidade em rio, de uma população despreparada para fugir das águas, de uma metrópole afundando. Lembro-me, do fatídico ano de 1966, no qual era Eu um morador dessa cidade no bairro do Alto da Boa Vista, lindo recanto incrustado na floresta da Tijuca. Na época a cidade sofreu uma das maiores chuvas de verão, forte e duradoura que destruíu grande parte da cidade, em particular os pontos altos e íngrimes. Era menino e presenciei uma tarde escura, ventos e uma chuva forte, cada vez mais forte, em um início de noite, já abrigado em casa, com meus irmãos e minha querida Mãe. Não tínhamos a noção do que iria ocorrer, era sobrenatural, era imprevisto, era uma força maior e incontrolável, a natureza atacando de cima prá baixo, com fúria, com raiva...
Bem, a memória de menino registra uma casa sólida, com 2 pavimentos, uma sala ampla, tranquila em seu normal e naquela noite abrigando uma família unida esperando o provedor chegar para um jantar agradável. A forte chuva já incomodava, fazendo graça, brincando com o amigo vento de fazer barulho, nas janelas, assovios nas frestas das portas, batuques no telhado. Um menino via aquilo como algo até divertido, tínhamos luz, casa, televisão, estava de férias, nada à temer, mamãe do lado, um pai forte e poderoso a chegar, uma vida pela frente, peladas, pipas, jogos de botões, caçadas de passarinhos, coisas que naquele sítio eram comuns e divertidas, um pouco mais de cidades de interior do que de cidade grande; mas Eu era do interior da cidade do rio de Janeiro, estava no mato, estava na chuva! E que chuva, tudo escuro, fortes e grossos pingos incomodavam, minha mãe já tinha um breve olhar de preocupação com o meu tardio pai, o tempo passava e um estrondo se ouviu. Não era um barulho normal, que navega pelo ar, era um tremor de terra, leve mais perceptível, vinha como um rugido de Leão enterrado vivo, ressurgindo do centro da terra, cavando para chegar à superfície, uma fera rouca e brava; não tínhamos jamais sentido essa sensação de som vindo de baixo e chegando aos ouvidos depois. A coisa mudou, a terra tremeu a luz apagou e, em frações de segundos, um clarão azul e amarelo tingiu o céu escuro ( uma fábrica inteira tinha sumido sob a lama, na estrada das furnas, soubemos depois ), uma pintura surrealista, nada compreenssível, nada agradável, mêdo. Sim o terror se espalhou nas faces de meus irmãos, minha Mãe trazia a coragem nordestina no peito e demonstrou uma força felina , protetora, decisiva : em passos calmos, escondendo o temor, foi buscar uma vela. Sim, o silêncio chegou, as luzes visíveis vinha do céu, em raios e trovões, e ela nos entretia dizendo que a chuva era bom para as plantas, e outras babozeiras que toda Mãe sabe fazer nessas horas.
O pior estava por vir, sim, ali era o começo do desastre. Uma explosão, no momento seguinte, fez o imponderável: uma boca enorme, como um crocodilo, adentrou a sala, nem pela porta a besta se deu trabalho de se apresentar, ela queria um show, e o fez. Uma placa do piso sólido se abriu, como uma boca de jacaré, sem comer, sem fome, vômitos. O animal estava mal, enjoado, jorrando sua massa escura pela boca, a água pulou do chão com força animal, uma boca no chão encharcado, sufocado, procurando ar...E estavamos ali, com uma fonte vigorosa de água turva jorrando do chão, casa a dentro, com força, nos movemos andar acima, minha Mãe comandou a debandada geral para uma escura escada, também já molhada, já prometendo cachoeira. No andar superior o mêdo já habitava, estava lotado de monstros, uns mais barulhentos outros mais silenciosos, em clarões e puxões, fomos casa à fora, fila indiana, com travesseiros e cobertores para a garagem externa da casa, rumo ao abrigo longe do desastre, aos carros que ainda tinha luz e força, e quem sabe um jeito de fugir.
Imaginem o pânico em uma época que não havia telefone sem fio, diria celular? Isso era ficção, só " National Kide " poderia nos salvar, daria tempo ? O cidadão viria do Japão ? Sabe nadar ????? Sei não, na minha capacidade de equacionar problemas essa não era a solução, vou seguir conselho materno : Vamos dormir, aqui é seguro, teu Pai vai chegar, calma, essa chuva vai passar. Dormi. Uma luz me acorda , horas depois, um carro vem com luz alta, buzinando forte e firme: Meu Pai. O herói chegou, molhado, assustado, mas sem perder o otimismo que sempre foi seu alimento diário. Dividimos o fardo, podíamos agora dormir melhor, 2 carros, 5 pessoas: São 2 prá lá 3 prá cá, um bolero sem gosto, úmido e sombrio, um tango de terror, uma noite morta e apagada, ao som da orquestra sinfônica da mãe natureza. Foi duro dormir, meus Pais não conseguiram, o dia chegou e as luzes que trariam a felicidade trouxe a visão da desordem. Tudo que era sólido virando pasta, o chão era uma pista de lama, a grama um charco, a sala um brejo, mas os monstros da noite foram trabalhar, foram derrubar viadutos, casas, fábricas, afogar os pobres, trazer cobras e aranhas, sapos e vermes para a cidade. Naquela semana a cidade naufragou.
Hoje vemos esse Rio ressurgir, aqui e ali ele volta, derruba tudo, um Rio em janeiro, um pensamento de botequim, uma bebida amarga que temos que tomar, cariocas da gema e paulistas da clara. Estamos afundando em cidades que não foram e nunca serão aptas a enfrentar as forças das águas de Março, nem de Janeiro. Minha felicidade caminha nas palavras de Tom Jobim " A melhor cidade para se viver no mundo é o Rio de Janeiro de Maio a Setembro ", que Deus o tenha !

Roberto Solano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário