segunda-feira, 24 de novembro de 2025

O estatuto do engenheiro

 

TEXTO: OS ESTATUTOS DO HOMEM
(ATO INSTITUCIONAL PERMANENTE) (Thiago de Mello)
A Carlos Heitor Cony
ARTIGO I Fica decretado que agora vale a verdade,
 que agora vale a vida,
 e que de mãos dadas,
 trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Agora vale a boa engenharia e, de mãos dadas, trabalharemos para a engenharia verdadeira 


ARTIGO II Fica decretado que todos os dias da semana,
 inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
 têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Que todos os dias, inclusive os mais cinzentos, serão para a boa técnica e melhoria de nosso conhecimento 


ARTIGO III Fica decretado que, a partir deste instante,
 haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

A partir desse instante seremos mais atenciosos com nossos colaboradores e prometemos mais paciência com nossos estagiários 



ARTIGO IV Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

O engenheiro confiará no projeto assim como o projetista confiará no engenheiro, em uma corrente contínua todos confiarão entre si para a execução da obra melhor que há 


PARÁGRAFO ÚNICO: O homem confiará no homem
 como um menino confia em outro menino.

O engenheiro confiará no outro engenheiro como um operário confia em Deus 

ARTIGO V Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armaura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

A verdade será servida na obra, em cada planta, em cada frase, em cada bom dia dado a cada operário 

ARTIGO VI Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

A comida da cantina será saborosa como a macarronada de nossa vó 


ARTIGO VII Por decreto irrevogável fica estabelecido
 o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Idem 

ARTIGO VIII Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

A maior dor é não saber da verdadeira razão do erro nosso de cada dia



ARTIGO X Fica permitido a qualquer pessoa,
 a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Permitido a qualquer hora do dia tirar o sapato apertado e jogar uma conversa fora para o bom relacionamento com os funcionários 



ARTIGO XI Fica decretado, por definição,
 que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Decretado que engenheiro é gente, sofre, ri, ama e detesta os que não lhe dão atenção 



ARTIGO XII Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Nada será obrigado ou proibido no canteiro da obra, menos não atestar a qualidade do concreto 



PARÁGRAFO ÚNICO: Só uma coisa fica proibida:
 amar sem amor.

É proibido fazer engenharia sem amar a profissão 


ARTIGO XIII Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

O dinheiro será um servo da boa engenharia e nunca uma ferramenta de corrupção e facilidades 


ARTIGO FINAL Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

O bom engenheiro tem a liberdade de dizer não para erguer sua obra repleta de sins com qualidade e segurança 

Quinta Normal, 
Santiago do Chile, 
abril de 64.
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. Disponível 



O caranguejo

 O caranguejo 


Fui no IA perguntar o que é caranguejo 


Caranguejo é um crustáceo decápode 


encontrado em ambientes marinhos


Fui na obra perguntar ao mestre de obras 


Doutor, aqui na obra esse bicho é que segura o ferro 


Valente que só! Sem ele o negativo se lasca

Bicho bom


Perguntei se podia armar uma laje sem ele


A resposta veio curta e grossa:

O doutor está doido?


Fui tomar uma cerveja gelada comendo um caranguejo 🦀

sábado, 22 de novembro de 2025

Entrevista

 Entrevista 


Você tem autoestima?

Não, só automóvel velho


Amor próprio?

Não, vendi


Empatia?

Não sei o que isso significa...


Gosta de desafios?

Morro de medo 


Pós graduação?

Posso responder depois?


Pretensão salarial 

Pretensão eu tenho, salarial é o que pintar


Qual sua maior ambição?

Ser político, de preferência do PT 


Se acha capaz? 

Se Janja conseguiu...

O interfone

 O interfone 


O interfone tocou 


Alô, bom dia, sua consciência está aqui 

O porteiro avisou...

Diz pra ela voltar outro dia

Trimm, trimm, trimm 

Doutor, ela insiste em falar com o senhor 

Diz que estou doente...

Trimm, trimm, trimm 

Ela disse que é mentira!

Saco! Manda subir.

Na minha porta uma descabelada 

Pensei "minha consciência nunca foi atraente"

No sofá ela me cobrou: você não vive sem mim 

Eu? Sempre vivi, sem culpa e feliz

Ela sorriu e disse:"sua alegria acabou"


Hoje moro com a minha consciência pesada 

Ela engordou 

Eu emagreci



sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Como um agricultor

 Como um agricultor

Fazendo poesia como um agricultor eu cavo a inspiração 


Removendo os sentimentos na memória barrenta 

Procurando minha mãe como um louco


Adubando minhas dores como Dolores Duran 

No clarão da manhã buscando chuva 


No entardecer buscando amores

Agricultor de terra árida e poeta sem sentimentos 


Eu sou





domingo, 16 de novembro de 2025

O calculista apaixonado

 O calculista apaixonado 


O calculista apaixonado ama seu projeto 
Sonha com ele e acredita no amor 
Se dedica, com a eterna busca do impossível 
Calcula o possível 

Sou do tempo em que se podia amar com as mãos 
Sim, acariciar o papel manteiga 
Riscar com a lapiseira 
Desenhar momentos...

O amor era feito de momentos e cortantes
Quando a estrutura não era possível a solução adiada
Mas o amor tem pressa e cobra
Que tal plastificar essa seção?
Aumentar a viga é desistir na porta da igreja 
Mudar a posição do pilar é um divórcio litigioso 
Ele pensa, ele ama, chega a sonhar com o impossível 

"Eu gosto tanto de você que até prefiro esconder, deixa assim ficar subentendido"
Como o Lulu Santos ele liga para o arquiteto e marca uma reunião 
É o amor a profissão que o faz sofrer assim


Roberto Solano 

sábado, 15 de novembro de 2025

Gaveta do passado


 Gaveta do passado


Na gaveta do passado fui procurar a coisa certa


Quanto mais vasculhava mais me desesperava


O pó velho adentrando as narinas do esquecimento 


As mãos trêmulas no tato falho, e nada se acha


Lá dentro brotam papéis em branco e dúvidas 


Eu não acho o passado tão bem guardado 


Eu não entendo o presente aqui do meu lado 


A gaveta do esquecimento engoliu a do passado 

E

Apodreceu a do presente